26/06/05

O PRAZER DE LER - 20

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Leio só livros usados.
Encosto-os ao cestinha do pão, mudo a pá­gina com um dedo e ela fica quieta. Assim mastigo e leio.
Os livros novos são impertinentes, as folhas não ficam quietas quando as passamos, resistem e temos de carregar para que fiquem em baixo. Os livros usados têm as costas frouxas, as páginas vão-se lendo sem vol­tarem a erguer-se.
Por isso na tasca ao meio-dia sento-me na cadeira do costume, peço uma sopa e vinho e leio.
São romances de mar, aventuras na montanha, nada de histórias de cidade, que já as tenho à minha volta.
Levanto os olhos para um pouco de sol que se reflecte no vidro da porta de entrada de onde entram os dois, ela com ar de vento pelas costas, ele com ar de Cinzas.
Volto ao livro de mar: há uma pequena borrasca, de força oito, o jovem come com apetite enquanto os outros vomitam. Depois sai para o convés, aguentando-se rijo porque é jovem, só, alegre com a bor­asca.
Tiro os olhos do livro para esmagar alho cru na sopa. Absorvo um pequeno gole de tinto áspero, lenhoso.
Volto páginas dóceis, garfadas lentas, depois afasto cabeça do branco do papel e da toalha e sigo a linha os azulejos da parede que dá a volta à sala e passa por trás de duas pupilas negras de mulher, postas naquela linha como dois "mi" cortados pela linha de baixo do pentagrama. Estão fixos em mim.
Ergo à mesma altura o copo e deixo-o suspenso antes de o beber. O alinhamento leva-me a um princípio de sorriso nas faces. A geometria das coisas em redor leva a que aconteçam coincidências, encontros.
A mulher sorri frontal.[.......]


Erri Del Luca, Três cavalosed.Ambar, Porto, 2004

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