23/07/06

CAMONIANAS - 18


vermeer -rapariga com brincos de pérola

Aquele mover de olhos excelente
(elegia)

Aquele mover de olhos excelente,
aquele vivo espírito inflamado
do cristalino rosto transparente;

aquele gesto imoto e repousado,
que, estando na alma propriamente escrito,
não pode ser em verso trasladado;

aquele parecer, que é infinito
para se compreender de engenho humano,
o qual ofendo enquanto tenho dito,

me inflama o coração dum doce engano.
me enleva e engrandece a fantasia,
que não vi maior glória que meu dano.

Oh, bem-aventurado seja o dia
em que tomei tão doce pensamento,
que de todos os outros me desvia!

E bem-aventurado o sofrimento
que soube ser capaz de tanta pena,
vendo que o foi da causa o entendimento!

Faça-me, quem me mata, o mal que ordena;
trate-me com enganos, desamores;
que então me salva, quando me condena.

E se de tão suaves disfavores
penando vive üa alma consumida,
oh! que doce penar! que doces dores!

E se üa condição endurecida
também me nega a morte, por meu dano,
oh! que doce morrer! que doce vida!

E se me mostra um gesto brando e humano,
como quem de meu mal culpada se acha,
oh! que doce mentir! que doce engano!

E se em querer-lhe tanto ponho tacha,
mostrando refrear o pensamento,
oh! que doce fingir! que doce cacha!

Assi que ponho já no sofrimento
a parte principal de minha glória,
tomando por milhor todo o tormento.

Se sinto tanto bem só na memória
de vos ver, linda Dama, vencedora,
que quero eu mais que ser vossa a vitória?

Se tanto vossa vista mais namora
quanto eu sou menos para merecer-vos,
que quero eu mais que ter-vos por senhora?

Se procede este bem de conhecer-vos
e consiste o vencer em ser vencido,
que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?

Se em meu proveito faz qualquer partido,
só na vista duns olhos tão serenos,
que quero eu mais ganhar que ser perdido?

Se meus baixos espritos, de pequenos,
ainda não merecem seu tormento,
que quero eu mais, que o mais não seja menos?

A causa, enfim, me esforça o sofrimento,
porque, apesar do mal, que me resiste,
de todos os trabalhos me contento;
que a razão faz a pena alegre ou triste.


Luís de Camões, Rimas

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