03/09/06

LEITURAS - 20




O dia de cozedura de vavó Luzia calhava sempre à sexta-feira. O chão da cozinha, revestido de tijolos vermelhos e que nos outros dias da semana se podia varrer com a língua, ficava, nesse dia, num verdadeiro esparrame: os molhos de lenha de ramada e de tremoceiros atados com um baraço de tabuga e emedados ao pé do talhão da água, os alguidares de barro da Vila em cima da amassaria com a massa levedando que era um louvar a Deus - ela nunca se esquecia de a benzer e encomendar no fim da amassadura, ao acrescentar-lhe o fermento - e vavó, lenço pela testa e amarrado atrás na nuca, a cova-do-ladrão, numa dobadoira viva, as faces tintas do lume, ora tendendo o pão já lêvedo, ora botando lenha no forno para o esquentar.Todas as manhãs que Nosso Senhor botava ao mundo, no meu caminho para a escola do senhor professor Anacleto, o Caniço, por ser acrescentado em tamanho e escanzelado de carnes, era certo como a Igreja que tinha paragem obrigatória na tenda do meu avô José dos Reis, à ilharga da casa. Pedia-lhe a bênção, vavô subença, Deus te abençoe, meu rico home, e, enquanto o dianho esfregava um olho e coçava o rabo pelado, dava meia volta pelas traseiras e ia ter à cozinha, onde era milagre não se encontrar vavó Luzia na lida das panelas, da lavagem ou do pão.
Cristóvão de Aguiar, A semente e a seiva, (cap. I, abertura), da trilogia Raiz Comovida.

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