18/11/06

LEITURAS - 27




"Agora deixa que te diga uma coisa - disse, e encostou-se à cómoda, acendeu um cigarro e, num gesto distraído, deitou o fósforo na salva dos cartões-de-visita. - Entre nós sucederam coisas que não podemos calar por mais tempo. Há quem silencie durante toda a vida o que foi mais importante. Às vezes morrem connosco. Mas, às vezes, há maneira de as dizer... e, então, não se pode, não é admissível que continuemos calados. Creio que um silêncio destes pode ter sido o pecado original de que se fala na Bíblia. Há uma mentira ancestral na vida; o homem tarda a dar-se conta dela. Não queres sentar--te? Senta-te, Eszter, e escuta-me. Não, desculpa, mas, desta vez, gostaria de ser eu a elaborar a acusação e a ditar a sentença. Até agora foste tu a sentenciar. Senta-te, por favor.
Falava em tom cortês, mas peremptório.

- Toma - disse, e indicou uma cadeira. - Olha, Eszter, nós falamos sobre tudo há vinte anos, As coisas não são assim tão simples, Tu elencas os meus pecados - tu e os outros -, e esses pecados, infelizmente, são ver­dadeiros. Falas-me de um anel e de mentiras, de promessas que não cumpri, de letras que não paguei. Mas há outras coisas, Eszter. E piores. É supérfluo dizer tudo... não me quero defender... pois não são já esses pormenores a decidir o meu destino. Fui sempre um fraco. Gostaria de ter feito alguma coisa neste mundo, e nem era absolutamente desprovido de talento. Mas intenções e talento tudo isso é muito pouco. Agora já sei que é pouco. Para a criação é preciso algo mais... Uma espécie de força particular, ou de disciplina, ou as duas juntas, e julgo que isso é o que se chama ter carácter… E essa capacidade, ou característica, é que me falta. É uma estranha surdez. É como se alguém conhecesse exactamente a música cuja melodia entoa mas não ouvisse os sons. Quando te conheci, ainda não sabia isto assim, com a precisão com que te conto... nem sabia que tu significavas, para mim, o carácter. Compreendes?

- Não - disse, com franqueza.

Não eram tanto as suas palavras que me surpreendiam, mas o seu tom de voz e a maneira de falar. Nunca o ouvira falar neste tom. Falava como alguém que... não, é-me quase impossível descrever o tom da sua voz. Falava como alguém que entrevê algo, uma verdade, ou uma descoberta, e vai pelo caminho certo, não pode ainda dizer a sua verdade, mas está cada vez mais perto da sua visão e, em espasmos, esforça-se por gritar ao mundo as suas impressões. Falava como alguém que sente algo. Eu não estava habituada a esse tom de voz em Lajos. Observava-o em silêncio.

Que simples - disse. - Depressa compreendes. Tu foste, tu poderias ter sido, para mim, o que me faltava: o carácter. São coisas que se sentem. Uma pessoa que não tem carácter, ou não tem um carácter perfeito, tem o seu quê de inválido, no sentido moral. Há muitas pes­soas assim. Como se fossem criaturas perfeitas, a quem falta uma mão, ou uma perna. Aplica-se-lhes uma prótese e tornam-se logo capazes de trabalhar, de ser úteis à sociedade. Não te ofendas com a analogia, pois tu poderias ter sido uma prótese para mim... Uma prótese moral. Espero não magoar-te -acrescentou, docemente, e inclinou-se para mim.
Não - disse -, só não acredito nisso, Lajos. Um carácter não se pode substituir. O sentido moral não se pode transmitir de uma pessoa para outra como um transplante artificial. São teorias. Não te ofendas.

- Não são só teorias. O sentido moral, vês, não é algo de hereditário, mas uma característica adquirida. Os homens nascem sem moral. O sentido moral dos sel­vagens ou das crianças é diferente da moral de um juiz de sessenta anos do Supremo Tribunal de Viena ou de Amesterdão. Adquire-se o sentido moral durante a vida, tal como se adquirem maneiras e cultura.”

Sandor Marai - in A Herança de Eszther
-Publ.D.Quixote,2006

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