04/03/08

LEITURAS - 68

SENTO-ME aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha ver­dade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite. Uma aragem quente banha-me a face, os cães ladram ao longe desde o escuro das quintas, fre­mem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta. Esta cadeira em que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, eram ob;ectos inertes, dominados, to­dos revelados às minhas mãos. Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presença estremece na sua face de espectros... Mas dizer isto é tão absurdo!
Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original (...)

Vergílio Ferreira - Aparição.

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