21/04/08

O PRAZER DE LER - 77


A intimidade perdida…
Neste princípio de insónia, repenso o ritual da leitura, todas as noites, à cabeceira da cama, quando ele era pequeno, a horas fixas e com gestos imutáveis: era de certo modo como uma oração. O súbito armistício depois da balbúrdia do dia, os reencontros livres de todas as contingências, o momento de silêncio concentrado antes das primeiras palavras da história, a nossa voz que finalmente soa como de facto é, a liturgia dos episódios… Sim, a história lida todas as noites constituía a mais bela função da oração, a mais desinteressada, menos especulativa, a que dizia respeito apenas aos homens: o perdão das ofensas. Não se confessava nenhuma falta, não havia qualquer preocupação em receber uma porção de eternidade, era um momento de comunhão entre nós, a absolvição do texto, um regresso ao único paraíso que tem valor: a intimidade. Sem que o soubéssemos, descobríamos uma das funções essenciais do conto, e mais generalizadamente da arte em geral, que é impor uma trégua no combate entre os homens.O amor ganhava um novo rosto.E era gratuito.

Daniel Pennac - Como um romance

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