30/04/09

LEITURAS - 109



[nessa noite]

[...]
Nessa noite fumei um cigarro na areia, à beira-mar. O sol chegava rapidamente ao horizonte e começava a esconder-se atrás da ilha de Moorea, à minha direita. Opostas à luz, as montanhas desenhavam-se negras e poderosas no céu incendiado. Como velhos castelos de ameias. Enquanto todas estas terras sucumbem no dilúvio, de tanta feudalidade desaparecida para sempre e respeitada pelas ondas (murmúrio de uma multidão imensa) resta a cimeira protectora mais próxima dos céus, que olha majestosamente para as águas fundas, a ironia ou a altivez condoída. Esta multidão talvez submersa por ter tocado na árvore da ciência, opondo-se à cabeça. – Esfinge.
A noite chegou depressa. Desta vez ainda Moorea dormia. Mais tarde adormeci na minha cama. Silêncio de uma noite tahitiana. Só se ouviam as batidas do meu coração. Da cama viam-se os caniços alinhados e espaçados da cabana, com filtragens de lua, como um instrumento de música. Entre os nossos antepassados, chama-se pipo*, entre eles vivo – mas silencioso – (de noite fala a recordar). Adormeci com esta música. Por cima de mim, o grande telhado alto de folhas de pandanus com os lagartos que nele moram. No sono eu podia imaginar o espaço acima da minha cabeça, a abobada celeste, nenhuma prisão que nos fizesse sufocar. A minha cabana era o espaço, a liberdade.
Eu estava completamente só e olhávamos um para o outro.
Dois dias depois, esgotei as minhas provisões. Com dinheiro, eu tinha imaginado que encontrava o necessário para me alimentar. Ora a comida existe é nas árvores, na montanha, no mar, mas tem de saber-se trepar a uma árvore alta, ir à montanha e voltar carregado, apanhar peixe, mergulhar e no fundo das águas arrancar conchas solidamente coladas à rocha. Eu, homem civilizado, por ali andava e naquele instante muito abaixo do selvagem; e como o estômago vazio me obrigava a pensar tristemente na situação, um indígena fez-me sinais e gritou na sua língua: «Vem comer». Compreendi mas senti vergonha. Abanando a cabeça, recusei. Minutos depois uma criança veio em silêncio abandonar-me à porta alguns alimentos embrulhados muito asseadamente em folhas verdes recém-colhidas, e retirou-se. Como eu sentia fome foi em silêncio, também, que aceitei. Um pouco mais tarde o homem passou. Sem parar, só disse com ar amável uma palavra: «Paiá»? Estás satisfeito, percebi vagamente.
No chão, debaixo de tufos de largas folhas de abóbora, descobri uma cabeça pequena e escura, de olhar tranquilo. Estava a ser examinado por uma criança que fugiu amedrontada, quando os meus olhos encontraram os seus. Estas criaturas, estes dentes de canibal faziam subir-me à boca a palavra «selvagens». Para eles eu também era «o selvagem». E talvez com razão.

[...]


Paul Gauguin,excerto de NOA NOA

*Nota do Tradutor: Escrevendo «pipo», Gauguin deve talvez querer referir-se a pipeau, ou seja, uma gaita pastoril que pode realmente sugerir os caniços paralelos da sua cabana.
(in Noa Noa, precedido de Homenagem a Gauguin, de Victor Segalen, tradução de Aníbal Fernandes, Assírio & Alvim, 1985 - Arte e produção)

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