31/08/09

POETAS MEUS AMIGOS - 109




Tempo para as rosas

Haverá um tempo
em que não subirás as escadas
com a ânsia de chegar ao topo.
Nem terás o primeiro lugar
nas cancelas para receber as rosas
e não ouvirás o clamor do olhar
- lobo faminto que devora.

Haverá outros tempos
quando contarás passo a passo
len-ta-men-te.
Dominarás o olhar e,
sem recebê-las, olharás as rosas.
Haverá então eternidade no teu interior
Para provar o doce sabor do tempo finito.

Sem pressa, estarás no topo
E beberás os segredos
Escondidos enquanto corrias.

Mary Castilho
In http://passaropoesia.blogspot.com/

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30/08/09

O PRAZER DE LER - 98




[Leituras de Verão] *

Desde que existe um público (quer dizer: desde que há uma literatura) o leitor, colocado diante duma grande variedade de escritores e de obras, reage de duas maneiras: por um gosto e por uma opinião. Instalado diante dum texto, vai produzir-se nele o mesmo clic interior que sentimos, sem regra e sem razão, quando encontramos alguém: «ama» ou «não ama», sente ou não sente, à medida que vai virando as páginas, a sensação de ligeireza, de liberdade pura, embora suspensa, que se pode comparar à sensação dum galope sobre um cavalo de raça.

Julien Gracq, A literatura no estômago
Trad. de Ernesto Sampaio
*e não só...digo eu (Amélia)

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29/08/09

LER OS CLÁSSICOS - 112


capa de Ilda David.


Noite escura


Em uma noite escura, com ânsias,
em amores inflamada,
oh ditosa ventura!,
saí sem ser notada
estando minha casa sossegada.

Na escuridão, segura,
pela secreta escada disfarçada,
oh ditosa ventura!,
no escuro ocultada,
estando minha casa sossegada.

Nessa noite ditosa,
secretamente, que ninguém me via,
de nada curiosa,
sem outra luz nem guia
senão a que no coração me ardia.

Só esta me guiava
com mais certezas que a luz do meio-dia,
aonde me esperava
quem eu bem conhecia,
num sítio onde ninguém aparecia.

Oh Noite, que me guiaste!
oh noite mais amável que a alvorada!
oh noite que juntaste
Amado com amada,
amada em seu Amado transformada.

Em meu peito florido,
que só para ele inteiro se guardava,
ficou adormecido,
e eu o afagava
e o leque de cedros brisa dava.

A viração amena,
enquanto seus cabelos eu espargia,
com sua mão serena
o meu colo feria
e meus sentidos todos suspendia.

Detive-me, olvidei-me,
o rosto reclinei sobre o Amado,
cessou tudo e deixei-me,
deixando o meu cuidado
por entre as açucenas olvidado.


S.Juan de la Cruz - Poesias Completas
(tradução: José Bento - Poesias Completas,
Assírio e Alvim)

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28/08/09

LI E RECOMENDO - 10



Os últimos compassos do Bolero são tensos, violentos, quase insuportáveis. O som sobe, enche a sala, agora toda a assistência está de pé, olha para o palco onde os bailarinos rodopiam, aceleram o movimento. Há pessoas que gritam, os tantãs retumbam e sobrepõem-se às vozes. Ida Rubinstein , os bailarinos são fantoches, arrebatados pela loucura. As flautas, os clarinetes, os saxofones, os tambores, os címbalos, os tímbales, todos os instrumentos se flectem, extremamente tensos, até à estrangulação, até quebrarem as cordas e as vozes, até quebrarem o egoísta silêncio do mundo.
A minha mãe, quando me contou a história do Bolero falou-me da sua emoção ,dos gritos, dos aplausos e dos assobios, do barulho. Algures na mesma sala, encontrava-se um homem que ela nunca conheceu, Claude Lévi-Strauss, Como ele, muito mais tarde, a minha mãe confiou-me que aquela música mudara a sua vida.
Agora, compreendo porquê. Se o que significava para a sua geração aquela frase repetida, seringada, imposta pelo ritmo e o crescendo:.O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma raiva, de uma fome. Quando termina em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes atordoados.

Escrevi esta história em memória de uma jovem que, involuntariamente, foi uma heroína aos vinte anos.-
capítulo final

J.Le Clézio,A música do silêncio, Dom Quixote, 2009

O autor narra a decadência de uma família oriunda da Ilha Maurícia exilada em Paris durante os turbulentos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial, anos marcados pela inconsciência dos cidadãos e dos políticos, pelo anti-semitismo e pelo sofrimento gerado pela guerra.
(da contracapa do livro)

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DESASSOSSEGOS - 92



Junho chegara ao fim, a magoada
luz dos jacarandás, que me pousava
nos ombros, era agora o que tinha
para repartir comigo,
e um coração desmantelado
que só aos gatos servirá de abrigo.

Eugénio de Andrade, "Despedida"

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27/08/09

CANTIGA DE RODA



Cantiga de Roda

Indo eu por i abaixo – em busca dos meus amores
Encontrei um laranjal – carregadinho de flores
Eu deitei-me à sombra dele – que não me queimasse o sol
Acordei de madrugada – ao cantar do rouxinol
Rouxinol que tão bem cantas – onde fostes a aprender
Aos palácios da rainha – onde o rei estava a escrever
O rei estava na janela – a rainha no quintal
Atirando-se um ao outro – com pedrinhas de cristal
Um atira, o outro atira – não se puderam acertar
Estavam colhendo laranjas – No seu rico laranjal
A do fundo a vintém – a do meio a real
A do cimo d'alto preço – ninguém lhe pode chegar

do cancioneiro transmontano

Também cantado por Vitorino

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26/08/09

PÉROLAS - 171

Tentar.
Errar.
Tentar de novo.
Errar de novo.


Errar melhor.



Samuel Beckett

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25/08/09

DO FALAR POESIA - 102



- O que é poesia para você?
- A poesia se há uma função para ela, é a de ter o poder de transformar o irreal no real e o real no imaginário. Tem o poder de humanizar um mundo que está zangado consigo. Este mundo em que vivemos em meio a tanta barbárie.
Creio no poder da poesia, que me dá razões para ver adiante e identificar um clarão de luz. Eu sou um trabalhador de metáforas, não um trabalhador de símbolos.
Eu considero a poesia uma medicina espiritual. Posso criar com palavras o que não encontro na realidade. É uma tremenda ilusão, mas positiva: não tenho outra ferramenta com que encontrar um sentido para minha vida ou para a vida daqueles do meu chão (vide “Filhos da Várzea”). Tenho o poder de outorgar-lhes beleza por meio de palavras e plasmar um mundo belo expressando também sua situação. No feio também há beleza. Tudo é matéria para o poema.


Anibal Beça N.13 Set 1946/F. 25 de Agosto de 2009

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OMNIA VINCIT AMOR - 128



[Nunca Nos Separamos do Primeiro Amor]


Nunca nos separamos do primeiro amor. Já o disse em Hiroshima Mon Amour: o que conta não é a manifestação do desejo, da tentativa amorosa. O que conta é o inferno da história única. Nada a substitui, nem uma segunda história. Nem a mentira. Nada. Quanto mais a provocamos, mais ela foge. Amar é amar alguém. Não há um múltiplo da vida que possa ser vivido. Todas as primeiras histórias de amor se quebram e depois é essa história que transportamos para as outras histórias. Quando se viveu um amor com alguém, fica-se marcado para sempre; e depois transporta-se essa história de pessoa a pessoa. Nunca nos separamos dele.

Não podemos evitar a unicidade, a fidelidade, como se fôssemos, só nós, o nosso próprio cosmo. Amar todas as pessoas, como proclamam alguns, e os cristãos. Isso é embuste. Essas coisas não passam de mentiras. Só se ama uma pessoa de cada vez. Nunca duas ao mesmo tempo.

Marguerite Duras -in 'Mundo Exterior'

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24/08/09

Blogue - prémio seu blogue é viciante

O José Luís Sarmento acaba de me presentear com este selo. Deveria eu continuar,indicando blogues da minha preferência.
Tenho dificuldade em fazê-lo e por isso não o farei. Aqui ficam o selo e os meus agradecimentos por constar das preferências do J.Luís Sarmento, cujo blogue - http://legoergosum.blogspot.com/ está também entre os meus preferidos.

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POEMAS COM ROSAS DENTRO - 72



[sempre que em Ogígia]



Sempre que, em Ogígia, voltava aos braços de Calipso
para, no seu leito de rosas, travar sem tréguas nova
batalha fingida, não era pois do mar esse rumor de
vagas que, de céu a céu, me perseguia, mas da

[ cadência
do remo com que, mais tarde, havia de medir:

[ do sol, a
altura; do abismo, a sombra do naufrágio.

Vergílio Alberto Vieira
In "Sombras de Reis Mendigos", Ed. Livros de Horas,Porto, 2009

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23/08/09

PENSAR - 100

img.de rui vale e sousa

Não ter memória é o máximo da solidão. Possuir memórias não compartilhadas, diferentes do grupo do qual se está participando, é como estar numa ilha cercado de impressões alheias por todos os lados. Fica-se a olhar o mar, pronto para acenar ao primeiro navio que o atravesse.

josé roldãoin Memórias da infância dos outros

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22/08/09

OS MEUS POETAS - 117


img.de cjulio- obtida no google

Mesa dos sonhos


Ao lado do homem vou crescendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo

E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida.
Ao lado do homem vou crescendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo

E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida.

Alexandre O'Neill - No reino da Dinamarca

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21/08/09

«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE» - 37



Vida

Choveu; e logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliáceas
Foi bem fecunda, a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liliáceas!

Calquem, recalquem, não o afogam.
Deixem. Não calquem. Que tudo invadem
Não as extinguem, porque as degradam?
Para que as calcam? Não as afogam.

Olhem o fogo que anda na serra.
É a queimada…Que lumaréu!
Podem calcá-lo, deitar-lhe terra,
Que não apagam o lumaréu.

Deixem! Não calquem! Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta além.
- E se arde tudo? - Isso que tem!
Deitam-lhe fogo, é para arder…

Camilo Pessanha

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20/08/09

NOCTURNOS - 72




A lua de agosto

É de raízes que nos fala esta luz
cuja existência se perde
no coração frio da água.
Ouço e não ouço, entro sem entrar
na serenidade
do mar estendido
do silêncio ao risco da noite.
O voo de uma ave
sombreia a lua de Agosto,
tudo se aproxima. Realidade
que as nossas vidas não alcançam.


Jeanette L.Clariond
Trad.«muito livre» de at -http://um-buraco-na-sombra.netsigma.pt/

Oiça também Luar do sertão -de Catulo da Paixão Cearense - em http://www.youtube.com/watch?v=NUOPTXahGJ4

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19/08/09

PÉROLAS - 170




O profundo silêncio das flores
é um lugar de ausência. Vazia moldura
para o voo das aves, linha oscilante
de ligeira névoa.
que nada revela do que talvez esconda...

Egito Gonçalves

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18/08/09

PENSAR - 99



Detalhes Importantes da Governação

Um sábio evita dizer ou fazer o que não sabe. Se os nomes não condizem com as coisas, há confusão de linguagem e as tarefas não se executam. Se as tarefas não se executam, o bem-estar e a harmonia são negligenciados. Sendo estes negligenciados, os suplícios e demais castigos não são proporcionais às faltas, o povo não sabe mais o que fazer. Um princípe sábio dá às coisas os nomes adequados e cada coisa deve ser tratada segundo o significado do seu nome. Na escolha dos nomes deve-se estar muito atento.(...) Suponhamos que um homem aprenda as trezentas odes de Chen King e que, em seguida, se fosse encarregado de uma parte da administração, mostrasse pouca habilidade; se fosse enviado em missão a países estrangeiros, mostrasse incapacidade para resolver por si mesmo; de que lhe teria servido toda a sua literatura?(...) Se o próprio príncipe é virtuoso, o povo cumprirá os seus deveres sem que lhe ordene; se o próprio príncipe não é virtuoso, pouco importa que dê ordens; o povo não as seguirá.

Confúcio, in 'Os Analectos'

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17/08/09

POETAS MEUS AMIGOS - 108


turner,naufrágio

perda

a noite singra o silêncio
a madrugada
a treva consumada de um naufrágio

todo naufrágio é um rito paramentado de mortos
a tentativa de ultrapassar
um barco que não existe

a noite comemora no silêncio
toda perda

Adelaide Amorim
www.inscries.blogspot.com

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16/08/09

DO FALAR POESIA - 101




[...]

Uma vez que o puro esplendor do poema constitui a prova da sua autoria divina, nele as considerações morais ou religiosas se subordinam a considerações estéticas. Se, como diz Goëthe, os gregos sonharam mais esplendidamente o sonho da vida é porque - agora sou eu que o digo - sonharam sonhos de poetas e não de profetas, pastores ou sacerdotes.

António Cícero, Excerto do artigo «Homero e as Musas»
in http://antoniocicero.blogspot.com/

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15/08/09

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 30



varina


É varina, usa chinela,

Tem movimentos de gata;

Na canastra, a caravela,

No coração, a fragata.

Em vez de corvos no chaile,

Gaivotas vêm pousar.

Quando o vento a leva ao baile,

Baila no baile com o mar.

É de conchas o vestido,

Tem algas na cabeleira,

E nas veias o latido

Do motor duma traineira.

Vende sonho e maresia,

Tempestades apregoa.

Seu nome próprio: Maria,

Seu apelido: Lisboa.

poema de David Mourão-Ferreira,musicado por Alain Oulmain, criado por Amália Rodrigues

http://www.youtube.com/watch?v=kWSQuO8kKOY
http://www.youtube.com/watch?v=wZVT2oseHEg

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«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE» - 36



Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um acto antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde – a perder de vista.

Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
– Longas teias de luar de lhama de oiro.
Legendas a diamantes das estrelas!

Quem vos desfez, formas inconsistentes
Por cujo amor escalei a muralha,
– Leão armado, uma espada nos dentes?

Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Reflectindo as estrelas, boquiabertos...


Camilo Pessanha,Clepsydra

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14/08/09

LEITURAS - 118


(...)
Se algum poeta madrugador tivesse passado pela Avenida Gabriel com os primeiros rubores da madrugada, teria escutado o rouxinol terminar os últimos trinados do seu canto nocturno, e visto o melro passear nas suas pantufas amarelas pelo jardim, como faria um pássaro que se sentisse em sua casa; mas, se tivesse passado à noite, depois de abafado o último rumor provocado pelas viaturas que regressavam da ópera, esse mesmo poeta teria podido vislumbrar uma sombra branca que dava o braço a um belo jovem; e o poeta teria regressado à sua mansarda, a alma mortalmente triste.

Théophile Gauthier
(excerto de Avatar, in Avatar e outros contos fantásticos, editorial Estampa, 1973)

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07/08/09

DESASSOSSEGOS - 91


img.de «à espera de godot»


que faria sem este mundo sem rosto sem perguntas
onde ser dura apenas um instante onde cada instante
verte para o vazio o esquecimento de ter sido
sem esta onda onde no final
corpo e sombra juntos se devoram
que faria sem este silêncio sorvedouro

[dos murmúrios
que anelam frenéticos por socorro por amor
sem este céu que se ergue sobre a poeira

[do seu lastro
que faria faria o que fiz ontem o que fiz hoje
espreitar do meu postigo para ver se não estou só
a dar voltas e voltas longe de toda a vida
num espaço fantoches
em voz no meio das vozes
encerradas comigo

Samuel Beckett

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06/08/09

O PRAZER DE LER - 81



A leitura


Meus olhos resgatam o

que está preso na
página: o branco do
branco e o preto
do preto

Herberto Hélder

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05/08/09

LER OS CLÁSSICOS - 111



Epigrama

Foi o medo, no mundo, que os deuses inventou,
no momento em que os raios do céu se despenhavam,
que as chamas destruíam os montes e as cidades.
Cedo se fez de Febo, de oriente a ocidente,
o deus que ordena a terra; a Lua a mensageira
da renovada esp´rança; dos signos,sobre o orbe,
a sucessão dos meses no decurso do ano.
Crédulos lavradores, com infundada crença,
trataram de honrar Ceres levando-lhe primícias,
e de com vastas palmas engrinaldaram Baco.
Só falta para aqueles que o mundo vão vendendo
finalmente inventarem o deus da avareza.

Séneca
(Fragmento 27,w I-9, 12-13.)

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04/08/09

DE AMICITIA - 89

[in cartões hallmark]

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DO FALAR POESIA - 100



Soneto inascido

O poema subjaz.
Insiste sem existir
escapa durante a captura
vive do seu morrer.
O poema lateja.
É limbo, é limo,
imperfeição enfrentada,
pecado original.
O poema viceja no oculto
engendra-se em diluição
desfaz-se ao apetecer.
O poema poreja flor e adaga
e assassina o íncubo sentido.
Existe para não ser.


Artur da Távola

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03/08/09

Pensar - 98



Amor Comparado


Queres ter uma ideia do amor, vê os pardais do teu jardim; vê os teus pombos; contempla o touro que se leva à tua vitela; olha esse orgulhoso cavalo que dois valetes teus conduzem à égua em paz que o espera, e que desvia a cauda para recebê-lo; vê como os seus olhos cintilam; ouve os seus relinchos; contempla os seus saltos, cambalhotas, orelhas eriçadas, boca que se abre com pequenas convulsões, narinas que se inflam, sopro inflamado que delas sai, crinas que se revolvem e flutuam, movimento imperioso com o qual o cavalo se lança para o objecto que a natureza lhe destinou; mas não tenhas inveja, e pensa nas vantagens da espécie humana: elas compensam com amor todas as que a natureza deu aos animais, força, beleza, ligeireza, rapidez. Há até mesmo animais que não sabem o que é o gozo. Os peixes escamados são privados dessa doçura: a fêmea lança no lodo milhões de ovos; o macho que os encontra passa sobre eles e fecunda-os com a sua semente, sem saber a que fêmea eles pertencem. A maior parte dos animais que copulam só têm prazer por um sentido; e, assim que esse apetite é satisfeito, tudo se extingue. Nenhum animal, com excepção de ti, conhece os entrelaçamentos; todo o teu corpo é sensível; os teus lábios, sobretudo, gozam de uma volúpia que nada cansa, e esse prazer só pertence à tua espécie; enfim, tu podes a qualquer tempo entregar-te ao amor, os animais têm o seu tempo específico. (...) Por isso, estás acima dos animais; mas, se gozas de tantos prazeres que eles ignoram, em compensação quantas tristezas os animais não fazem ideia!
Voltaire, in 'Dicionário Filosófico'

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02/08/09

«ENSINOU A OBSERVAR EM VERSO» - 21




Provincianas

Olá! Bons dias! Em Março,
Que mocetona e que jovem
A terra! Que amor esparso
Corre os trigos, que se movem
Às vagas dum verde garço!

Como amanhece! Que meigas
As horas antes de almoço!
Fartam-se as vacas nas veigas
E um pasto orvalhado e moço
Produz as novas manteigas.

Toda a paisagem se doura;
Tímida ainda, que fresca!
Bela mulher, sim, senhora,
Nesta manhã pitoresca,
Primaveral, criadora!

Bom sol! As sebes de encosto
Dão madressilvas cheirosas.
Que entontecem como um mosto.
Floridas, às espinhosas
Subiu-lhes o sangue ao rosto.

Cresce o relevo dos montes,
Como seios ofegantes;
Murmuram como umas fontes
Os rios que dias antes
Bramiam galgando pontes.

E os campos, milhas e milhas,
Com povos de espaço a espaço,
Fazem-se às mil maravilhas;
Dir-se-ia o mar de sargaço
Glauco, ondulante, com ilhas!

Pois bem. O Inverno deixou-nos,
É certo. E os grãos e as sementes
Que ficam doutros outonos
Acordam hoje frementes
Depois duns poucos de sonos.

Mas nem tudo são descantes
Por esses longos caminhos,
Entre favais palpitantes
Há solos bravos, maninhos,
Que expulsam seus habitantes!

É nesta quadra do amores
Que emigram os jornaleiros
Ganhões e trabalhadores!
Passam clans de forasteiros
Nas terras de lavradores.

Tal como existem mercados
Ou feiras, semanalmente,
Para comprarmos os gados,
Assim há praças de gente
Pelos domingos calados!

Enquanto a ovelha arredonda,
Vão tribos de sete filhos,
Por várzeas que fazem onda,
Para as derregas dos milhos
E molhadelas da monda.

De roda pulam borregos;
Enchem então as cardosas
As moças dessos labregos,
Com altas botas barrosas
De se atirarem aos regos!

Ei-las que vêm às manadas,
Com caras do sofrimento,
Nas grandes marchas forçadas!
Vêm ao trabalho, ao sustento,
Com fouces, sachos, enxadas.

Ai o palheiro das servas,
Se o feitor lhe tira as chaves!
Elas chegam as catervas,
Quando acasalam as aves
E se fecundam as ervas!


Cesário Verde

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01/08/09

OS MEUS POETAS - 116



A sesta



Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela não dorme, espreita também de olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios por entre o amarelo dos girassóis. E porque Ele se vem chegando perto, Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar.Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou cansada de tanto sono fingir.E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus estendidos.E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ela dormisse outra vez.


José de Almada Negreiros - Poemas

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