29/12/09

LEITURAS - 129


chagall, le cirque

[...]
Sempre ao rufar surdo do tambor o contorcionista se enrolava, sempre o volteador se fazia anunciar por uma fanfarra de trombetas. Augusto, porém, umas vezes era o silvo agudo de um violino, outras as notas trocistas de um clarinete que o acompanhavam durante o cabriolar de suas palhaçadas. Mas chegado o momento de cair em transe, os músicos, subitamente inspirados, perseguiam-no entre suas espirais de êxtase como corcéis grudados à plataforma de um carrossel tomado de loucura.Todas as noites ao aplicar o maquillage, Augusto discutia com seus botões. As focas, não importa o que fossem obrigadas a fazer, permaneciam sempre focas. O cavalo, um cavalo; a mesa, uma mesa. Augusto, embora permanecendo um homem, era obrigado a tornar-se em algo mais: tinha de assumir os poderes de um ser excepcional dotado de um excepcional talento. Tinha de fazer rir as pessoas. Não era difícil fazê-las chorar, tão-pouco fazê-las rir; descobrira isso há muito tempo, antes mesmo de ter sonhado entrar para o circo. Mais altas, porém eram as suas ambições - queria dotar os espectadores de uma alegria que se revelasse imperecível. Foi essa obsessão que primeiramente o levou a sentar-se aos pés da escada e simular o êxtase. Caindo, por mero acaso, na imitação de um transe - esquecera-se do que iria fazer a seguir. Quando voltou a si, um tanto confuso e em extremo apreensivo, encontrou-se a ser aplaudido freneticamente. No dia seguinte repetiu a experiência, desta vez com propósito deliberado, pedindo que o riso louco e absurdo que ele tão facilmente suscitava desse lugar àquela suprema alegria que tanto desejava transmitir. Contudo, apesar do quase fervor dos seus esforços, todas as noites o esperavam os mesmos aplausos delirantes. [...]

Henry Miller, O sorriso ao pé da escada - ed.Asa

(obs.:pode também ser lido na íntegra em http://aguarelast.blogspot.com/)

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