25/03/12

ANTONIO TABUCCHI, O MAIS PORTUGUÊS DOS ESCRITORES ITALIANOS

antonio tabucchi
A mulher de Porto Pim
(excerto)

Todas as noites canto, porque sou pago para isso, mas as canções que ouviste eram pézinhos e sapateiras para os turistas de passagem e para aqueles americanos que se estão a rir lá ao fundo e que daqui a pouco se vão embora aos ziguezagues. As minhas verdadeiras canções são só quatro chama-ritas, pois o meu repertório é escasso, e depois eu estou a ficar velho, e fumo de mais e a minha voz está rouca. Tenho de vestir este balandrau açoreano que se usava em tempos, porque os americanos gostam do pitoresco, depois voltam para o Texas e contam que estiveram numa tasca, numa ilha perdida, onde um velho com uma capa cantava o folclore do seu povo. Querem a viola de arame que dá este som de feira melancólica, e eu canto-lhes modinhas pirosas onde a rima é sempre a mesma, mas tanto faz, eles não percebem e, como vês, bebem gin tónico. Mas tu, o que é que procuras, que todas as noites vens aqui? Tu és curioso e procuras outra coisa, porque é a segunda vez que me convidas a beber, mandas vir vinho «de cheiro» como se fosses dos nossos, és estrangeiro e finges falar como nós, mas bebes pouco e depois ficas calado e esperas que fale eu. Disseste que és escritor e, no fundo, talvez a tua profissão tenha alguma coisa a ver com a minha. Todos os livros são estúpidos, há sempre pouco de verdadeiro neles, e contudo li muitos nos últimos trinta anos, mesmo italianos, naturalmente todos traduzidos, aquele de que mais gostei chamava-se Canaviais no vento, de uma tal Deledda, leste-o? E depois tu és jovem e gostas de mulheres, bem vi como olhavas para aquela mulher muito bonita com o pescoço alto, olhaste para ela toda a noite, não sei se estás com ela, também ela olhava para ti e talvez te pareça estranho, mas tudo isto acordou em mim qualquer coisa, deve ser porque bebi de mais. Sempre escolhi o demais na vida e isto é uma perdição, mas não há nada a fazer quando se nasce assim.

(...)

Nota pessoal:
É esta a minha homenagem, pequena, ao grande escritor italiano hoje falecido. Um dia ele contou que, estando como adido cultural em Espanha, encontrou numa estação um  um pequeno livro, de um tal Álvaro de Campos, intitulado de Bureau de Tabac. Comprou, leu, e de imediato pediu transferência para Lisboa que viria a ser, em boa parte, como para Fernando Pessoa, o seu «lar» - onde morreu hoje e vai ser sepultado. Aqui casou com Maria José Lencastre. Os dois traduziram para italiano a Poesia de Fernando Pessoa - com o título Una sola multitudine. Pessoa, de resto, teria influência sobre a sua própria obra romanesca.O primeiro livro que dele li foi justamente este, de que publico um pequeno extracto.Em tempos passei-o, integral, na Prosa da semana.Depois, continuei a lê-lo sempre com muito agrado.Um dos seus livros, Afirma Pereira daria lugar a um filme de Manoel de Oliveira, em que participou, entre outros, Marcello Mastroiani - que seria o seu último filme.Creio também que um outro dos seus livros, Nocturno Indiano, daria lugar a um filme.

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