27/04/12

OS MEUS POETAS - 250

relógio do
rosario
Relógio do rosário
Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro, 
e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco 
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada, 
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer, 
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome, 
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa 
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos, 
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas, 
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino, 
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única 
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face... Ele murmura 
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta, 
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência 
ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício 
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo, 
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário, 
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas, 
já se permite azul, risco de pombas.

drummond,claro enigmaCarlos Drummond de Andrade 

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